quarta-feira, 27 de maio de 2009

Famintos por pensamento


Um silêncio ensurdecedor tomou conta do espaço. No descer dos créditos, era quase possível escutar o ronco de consternação de estômagos previamente alimentados.
Durante os 110 minutos de exibição de Garapa, o novo documentário de José Padilha, um nó cego se amarrou sorrateiramente na garganta e pegou de surpresa até os que se predisporam às cenas mais perturbadoras. Imagens de uma realidade que normalmente é vista traduzida em números, índices e planilhas, provocaram uma espécie de catarse emocional coletiva, na sala seis do Artplex, em Botafogo.
No seu caso, em especial, a fome crua, dilacerante, brutal, retratada em preto e branco aguçou seus questionamentos sobre o mundo, sobre a natureza dos sentimentos e relações interpessoais, sobre solidão, sobre si mesma. A ingenuidade do menino que agoniza de dor pela dor, e não por sua própria condição miserável, elevou à décima potência sua autocrítica. Sentiu nojo de si mesma pelas tantas lágrimas derramadas por pseudo-problemas incomparáveis.
Visualizar uma criança morrer a cada cinco segundos no mundo, de fome, não nos permite a infelicidade por ninharias existenciais e nos obriga um posicionamento.
“Você não tem o direito de ser infeliz”. A frase tantas vezes pronunciada pela mãe, enfim, fez sentido. É covardia chorar por qualquer outra razão que não seja o estômago ecoando, experiência vivida diariamente por cerca de 920 milhões de pessoas no mundo, segundo o órgão das Nações Unidas para a agricultura e a alimentação, FAO.
No filme, três famílias do interior do Ceará são o espelho de uma legião de famintos, eufemisticamente enquadrados na situação de insegurança alimentar grave. Para enganar a fome dos filhos, água suja com açúcar que dá nome ao filme.
Garapa deve ser visto, não para ser julgado, sequer para ser apreciado. Deve ser visto para instigar uma outra fome, a de pensamento.

terça-feira, 19 de maio de 2009

Água rosa com açúcar


Na nossa inofensiva meninice, com delicadas superfícies macias, penteados cabelos brilhosos, sorrisos ornamentais e gestos coreografados, somos aquela inofensiva água com açúcar, que vovó já recomendava como calmante para os momentos conturbados. Somos calmamente pedaços soltos de cetim rosa que deve não só voar, mas flutuar com graça e eleganância pelas esquinas da vida. Não carregamos peso, não sujamos as mãos, não conseguimos nos defender das todas inúmeras perigosas artemanhas do mundo. Somos princesas. Gatinhas. Rosinhas. Doces. E ai da princesa que vomitar com tanto açúcar. Ah, sim. Por que princesa não vomita. Nada fisiológico nos acomete. O parto então, é quase um momento de perfeita iluminação cenográfica, em que todos os ângulos mais favoráveis são capturados. Se for uma bebê-menina, nem precisaria ser dito: já nasce com babados e brincos. É um milagre. Devemos esperar comportadas, comer pouco, beber de forma graciosa. O melhor é que nem se beba, mas vinho é aceitável. Branco. Ou rosa, obviamente. Bichos de estimação são permitidos, desde que sejam fofos. A fofura é outro aspecto essencial. Temos que ser fofas, meigas. Inteligência não é tão essencial assim, mas caso esteja presente é aceitável desde que não seja voltada para algo não feminino, como política, mecânica. Nossa senhora do santo batom nos proteja e a todas nossas filhas de que uma menina nasça com isso. Avecruzvirgecrispim. E quando se trata de sedução (ou seria melhor dizer do romance, já que pode não pegar bem para uma menina tão rosácea como eu falar de sedução)? Somos como vítimas nos assuntos do coração. Esperamos que o destino (ressalta-se que o destino, com seu poder incomensurável, só poderia ser um substantivo masculino, certo?) nos traga a alegria, que o cavalheiro charmoso magicamente nos encante ou - talvez, pobre de nós - um jovem mal-intenciondo nos seduza e nos arrebate do chão. Ai de nós. Vítimas do destino, dos cavelheiros ou da sedução. Pobres criaturas inofensivas que nada sabem, nada tem culpa, nada desejam, além de mais cremosia para nossa existência. Ainda bem que enjoar é algo bem feminino e que ninguém vai me julgar se eu desistir de tantas sedas cor-de-rosa por questões de saúde. Sou uma mulher enjoada com tanta água rosa com açúcar que nos afoga, que nós nos auto-afogamos, que afogamos umas as outras, em todos os benditos e perfumados dias.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Só vaga-lumes salvam


Quando eu era pequena, meu pai costumava levar nossos colchões para o jardim quando alguma coisa estonteante estava para acontecer no céu. Lua cheia, cometa, eclipse lunar, foguetes, balões de São João, fogos de artifício, vaga-lumes... Qualquer coisa que brilhasse lá em cima, garantia a aventura de uns quinze... Lembro das carinhas dos meus irmãos ansiosos e da força mental que fazíamos enquanto meu velho ligava para as casas de toda a molecada da rua e prometia aos respectivos pais velar o sono da macacada durante toda a “experiência”. Cada “sim”, ainda que desconfiado, era uma explosão de “Eees” e de risadas engraçadas que anunciavam o nível das expectativas para a empreitada.
Escalado o batalhão, começava a etapa de organização do espaço, seguida pela de preparação dos mantimentos e angariação de abrigos necessários para a madrugada a dentro. Para finalizar a logística, litros de repelente para que todos os bumbuzinhos voltassem lisinhos pra casa no dia seguinte. Condição quase contratual.
A noite começava a cair, e armados até os dentes de guloseimas variadas, deitávamos nos colchões e esperávamos pelo show. Qualquer que fosse ele.
Não sei precisar exatamente até que ponto as lembranças que trago guardadas realmente aconteceram. Até porque, a linha entre imaginação e realidade nunca foi muito bem delimitada na minha caminhada. O fato é que descobri dentro delas acontecimentos tão distintos quanto fantásticos que me renderam um surto de felicidade imediata. Chuvas de estrelas-cadente, danças com vaga-lumes, contatos sobrenaturais de terceiro grau, batalhas com armas imaginárias e munição de pipoca...
Precisei recorrer à minhas gavetas de infância, quando me vi sentada no chão do meu banheiro acuada com o tiroteio que se desenrolava a metros da minha casa.
Era uma noite de lua cheia de um domingo como outro qualquer e minutos antes eu, que agora me ajoelhava paralisada nos azulejos gelados, sassaricava pelas ruas de Ipanema na companhia de um i.pod e alguns pensamentos soltos.
Apesar de morar no Rio de Janeiro e de já ter entendido que o que se fala não é lenda, jamais havia em deparado com situação do tipo. Um medo genuíno me tomou conta.
O telefone não pega lá em casa e na falta de alguém dividir a tensão, sobrou novamente para a imaginação. Forrei o chão com algumas toalhas, coloquei os fones de ouvidos e pensei nas histórias do meu pai. Depois de algum tempo, os tiros de metralhadora se transformaram em fogos de artifício, que logo me transportaram para a guerra de pipocas... Entrei num transe gostoso e voltei para aquelas noites mágicas em que a única preocupação era se a quantidade de chocolate per capta seria o suficiente...
Acordei na manhã seguinte, contorcida no banheiro, com uma conversa que tive com a minha afilhada de cinco anos martelando a cabeça.
Estava num daqueles dias em que os problemas nos enchem até a tampa e nos cegam mesmo diante do pôr do sol mais lindo do planeta e, até encontrá-la, já tinha chorado baldes de lágrimas e berrado com meia dúzia de pessoas. Minha cabeça fervilhava, mas para não pagar uma de tia chata, contei a ela uma oração que eu costumava fazer no momento em que o sol se despedia e a noite começava a dar o ar de sua graça --“Primeira estrela que vejo, dê-me tudo que desejo” -- e pedi ela que fizesse um pedid...

– pede você primeiro?!

– saúde, paz, harmoni...

– Ai, madrinha! Pede uma coisa mais interessante!

– Joana, mas essas são as coisas importantes na vi...

Preparei todo discurso de que o equilíbrio é a chave para felicidade e ela saiu-se com essa:

–vááááááários vaga-lumes, por exemplo!!

Bingo. Não é que ela estava certa?

sábado, 9 de maio de 2009

Até logo!


Vai chegando ao fim a minha temporada no Solar da Paz. Depois de quinze dias instalada nesse retiro espiritual, respiro fundo, olho pela janela e deixo Madrid entrar. Vou morrer de saudades. Eu sei.

Mas hoje é dia de festa e nao tenho tempo para pensar na partida. Nem quero. Tenho que comprar o absinto, o rum e a vodca que prometi. Além do gelo, do jamón, da tortilla e do tabaco.

Aproveito o dia ensolarado e ponho aquele vestidinho que nao uso desde o verao passado. Acordei serena depois de mais uma noite povoada de sonhos e decidi que essa despedida vai ser encarada como um “até logo”. Nunca gostei de “adeus”.

É com um sorriso à la Carmem Miranda e com essa alegria brasileira que deixo os meus amigos e volto pra minha terra.

terça-feira, 5 de maio de 2009

O importante é...



Me lembrei da Daya, quando eu passava por um bloqueio de escritora amadora brabo, me aconselhando: "só senta e escreve". Me lembrei da Cadija, e seu primeiro texto aqui, no qual eu pude imaginar perfeitamente ela, com um vestidinho lindo, sentada no café com seu caderno - seguindo o conselho que a Daya me dava de presente anos antes. E foi a imagem da Eta lendo e comentando meus textos religiosa e carinhosamente, com um copo de vinho do lado e um cigarro na mão, o impulso final.

Como quem não sabe o que esperar do verão, alguém cansada das gavetas em desordem, alguém com saudades daquilo que foi (e do que ainda não foi), me apresento aqui. E no meio da minha sensação de solidão no mundo dos sentimentos bagunçados, encontro na minha própria válvula de escape companhia.

(nessas horas eu entendo quando dizem que junto é melhor que separado.)

sexta-feira, 1 de maio de 2009

Bagunça



As condições da minha casa sempre refletem a minhas condições. Roupas jogadas pelo chão, louça empilhando na pia, cama desarrumada. Dentro dos armários e gavetas, tenha medo. Às vezes me baixa uma entidade limpadora e eu saio arrumando tudo o que vejo pela frente, numa tentativa desesperada de fazer as coisas fazerem sentido, encontrarem seus lugares no mundo. Mas, o comum, é ficar tudo onde está, cumprindo seu papel inercial de imobilidade. Tudo parado no seu lugar, esperando um evento metafísico acontecer e mudar sua realidade. A espera me agonia. Esperar sem saber o que se espera. Mas se espera.

É claro que sempre existe a possibilidade de ajuda externa. Uma pessoa mágica que surge, entra na sua casa - faz plim! - e tudo vai pro seu lugar. Na minha casa isso acontece às quintas-feiras. Saio de casa, deixo a chave na caixa do condominio, e quando volto está tudo limpo, organizado, visualmente em paz. Mas o caos permanece. Não importa quantas pessoas você contrate, as suas gavetas, só você pode arrumar.

Acho incrível como todos nós vivemos e somos impulsionados pelo visual. Pia limpa, cama arrumada, chão limpo igual a casa em ordem. Daya limpa, sorriso no rosto, falando besteiras igual a Daya em ordem. Essa noção de ter uma intimidade inacessível, de ter gavetas trancadas que você é a única pessoa que tem a chave, dá uma dessas sensações incomparáveis de poder e de solidão. Ser capaz de ser e ninguém mais saber. De estar, e ninguém mais saber.

Minha casa é linda, cheia de pequenas coisinhas charmosas espalhadas em cantinhos estratégicos. Ela, vez por outra, fica uma bagunça, com tudo espalhado por lugares diferentes daqueles que originalmente são os seus. Mas toda quinta-feira, magic happens. Tudo fica visualmente confortável. Y todo esta en calma.

Desde que não se abram as gavetas. E que não se olhem dentro dos armários.