quarta-feira, 22 de abril de 2009

Camisa-de-força





Foi lá pelo oitavo apartamento trash em menos de uma semana que uns pensamentos escabrosos, meio a la Agatha Christie, começaram a invadir minha rotina. O bairro era Copacabana e o prédio, nem tão detestável assim. O elevador, confesso, me arrancava arrepios. Sempre destemida, subi ao 13º andar. Abri a porta e, naquele mesmo metro quadrado que antecede a fechadura, permaneci, boquiaberta, por alguns longos minutos. Olhei para o carpete ensebado com uma mancha grande e orgânica, sem cor definida, e imaginei aqueles corpos desenhados em branco que a gente sempre vê em filme policial americano.
Minha imaginação não se conteve e foi logo tratando de encontrar a alternativa mais insólita para aliviar a minha frustração e cansaço diante da epopeia carioca por uma morada decente.
As mortes mais estapafúrdias, de degolamentos a invasões alienígenas sanguinárias, se enfileiravam na minha lista de possibilidades. Um semblante maquiavélico tomou a minha fisionomia e não raro eu me pegava fazendo cara de Hitchcock, sustentando um dos olhos entreabertos...bonita que só!

Do alto de seus 86 anos, Dona Gertrudes, ex-vedete, morreu enforcada. Enforcou-se com o próprio desgosto pela frustração de exibir, ao invés das curvas torneadas e do viço de outrora, uma aparência decadente de quem se agarra ao passado de um igualmente decrépito Chacrinha para não deixar o tempo passar.
Parada respiratória. A vizinhança diz que a velha, sozinha, teve um ataque e, desesperada, deu com a cabeça no piano de cauda, único bem que herdara do marido playboy falido, morto num quarto do Copacabana Palace na companhia de moças de reputação duvidosa. Eis a explicação para a mancha que se espalhou no carpete do apartamento 1301.
O sangue da testa de Dona Gertrudes, que dividiu em dois a sala de estar do imóvel deteriorado pelo tempo e pela maresia, é hoje o pivô de uma briga judicial entre irmãos que, fatalmente, terminará engrossando o número de óbitos no local.
Dona Gertrudes deixou dois filhos no mundo. Apesar da vida medíocre a aparentemente deprimente, fora uma boa mãe. Mas não o suficiente para garantir o retorno afetivo da prole, que nos últimos anos apenas contribuiu para o desgosto da pobre.
A uma outra Dona, a Itália, síndica do prédio, que ao longo de quase 20 anos afeiçoou-se à senhora do treze-zero-um, foram confiadas – em testamento – as chaves da residência. E exatamente por isso eu estava ali.
Os anos de labuta nas portarias renderam a Itália expertise na administração de imóveis. A fama de boa corretora espalhou-se tão depressa que até os inquilinos de bairros mais nobres já procuravam seus serviços.
Na descrição, o “quarto-sala-banheiro-cozinha-americana-a-duas-quadras-do-posto-9” me pareceu simpático. Mas a realidade dispôs a minha imaginação ao trágico. Ou talvez minha imaginação é que dispôs o trágico à realidade.
O antigo morador, 30 anos, médico e maconheiro, foi abduzido por um bando de alienígenas revoltados com a invasão de robôs da NASA em território marciano. Tava na cara!
O maconheiro era um homem sozinho (condição que vem anunciada na testa do sujeito que procura um apartamento de quarto e sala) e por isso o plano extraterreno foi pro espaço, com o perdão do trocadilho.
Na ausência de ligações, resgates ou qualquer tipo de repercussão internacional diante do seqüestro no posto 9, o rapaz foi devidamente devolvido ao cafofo. Mas não sem antes se deparar com a sanguinária Maria, faxineira que não contava com a presença do patrão em horário de expediente e deu-lhe uma baita de uma vassourada nas fuças, levando o coitado a nocaute.
O jovem morreu, por ironia do destino, na fila da emergência do Miguel Couto, onde deveria estar, supostamente, fazendo plantão.Vida ingrata de la hóstia!
Dona Itália rezou dois Padre-Nossos e cinco Ave-Marias para salvar-se do purgatório diante do alívio que sentiu com o ocorrido. “Era um moço de bom coração. Só que não pagava o aluguel há dois meses. Mas a culpa é do governo. A secretaria de Saúde do Rio é uma verrrgonha”, justificou-se. E sorriu.
Senti um arrepio na espinha. E daquele sorriso amarelo, em que se notava a ausência de alguns dentes, puxei a linha do novelo. Dona Itália não me enganaria mais.
Topei ir ao Flamengo para o que deveria ter sido minha última visita. Sabe-se lá porque o elevador chegava só até o 7º. Subi quatro lances de escadas e dei de cara com um corredor longo e escuro. O apartamento 1111 era o último, lá no fundo do corredor. Caminhei devagar e apreensiva. Enxergava apenas pequenos fachos de luz que escapavam através das frestas e fechadura da porta de madeira.
Bati. Uma anã velha e com orelhas pontudas me apareceu contornada pela claridade que vinha da janela da saleta. Achei prudente não demonstrar estranhamento e segui com minha avaliação. Em princípio, e com exceção da anã orelhuda e do elevador que subia só até a metade do prédio, tudo me pareceu normal. Nada ali evocava minha pré-disposição ao sobrenatural. Deixei o banheiro por último porque, normalmente, esses recintos nos apartamento de quarto e sala são tão pequenos que nem sobra espaço para um assassinato. Digo, normalmente.
Tinha uma banheira branca descascada, dessas bem antigas, cercada por uma cortina de plástico ao lado do bidê. Ali, naquele cenário, a esposa adúltera foi esfaqueada pelo amante que já não mais a agüentava. Faziam duas semanas que o marido traído havia partido desta para uma melhor.
Intrigado com os sumiços repentinos da mulher, o marido lançou-se numa investigação que colocou em xeque sua sexualidade. Observar o casal em situações impróprias, num primeiro momento, provocou-lhe os sentimentos mais primitivos. Raiva, asco, desprezo. Não entendia como a vagaba poderia ter feito tamanha crueldade. Atormentado, desviou o foco dos julgamentos. Passou a se comparar com “o outro”, a observá-lo em cada movimento. Dormia e acordava pensando no homem. Não demorou muito, despencou de amores, do 11º andar.
Corre na boca miúda que o amante refugiou-se num apartamento de quarto e sala em Copacabana e que, antes de se envolver com a esposa safada, relacionava-se com uma senhora que trabalhava como síndica no mesmo prédio onde se esconde agora.
Dizem que ela o manipulava...

2 comentários:

  1. Muito bom!! Falando nisso, morreu alguem na sala de espera de um lugar que eu fui hoje. Dizem que foi de tedio...

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  2. Haha, muito bom!!!
    Enfim, achou sua cena de crime, ops, apartamento?

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